30.12.08

Aurora

Quando eu era pequeno, Deus não fazia muito sentido para mim. Na minha cabeça, era somente mais uma das formas que os adultos encontravam para manipular as crianças. O Todo-Poderoso se impunha (e acho que ainda se impõe) aos pequenos mais pelo medo de Seus supostos castigos, do que pela Sua magnanimidade e misericórdia. Como nunca fui um enfant terrible, eu cheguei à conclusão, mais ou menos óbvia, de que os adultos inventavam aquelas estórias todas para nos assustar e, assim, nos controlar melhor. Ou seja, manipulação pura e simples. Nunca concordei com a idéia de que a dita Onisciência Divina serviria apenas para vigiar e punir os nossos "terríveis" pecados. Daí para duvidar da existência do próprio Deus foi um pulo. Achava a Religião uma coisa meio insana, sabe? Era tudo misterioso demais, fantasioso demais! Se havia alguma lógica nos dogmas, esta Lógica foi pessimamente transmitida! Além daquele linguajar empolado da Bíblia, que parecia querer mais esconder do que revelar algo... Acredito que a fé se disseminava mais pela coerção psicológica do que pela eloquência das doutrinas. E tenho certeza de que boa parte das crianças de minha idade pensava o mesmo na época. Não era preciso ser nenhum gênio para se chgar a esta conclusão. Os adultos fariam de tudo para manter o controle sobre os seus filhos, nem que para isso precisassem mentir, ameaçar e castigar em nome de um dado "Poder Superior". Na condição de vítima (eximindo, porém, desde já, os meus pais da condição de algozes), e com o egocentrismo próprio de quem ainda não conseguia ter uma visão global das coisas, eu só não imaginava que os adultos também fizessem manipulações e intrigas entre si. Mas o tempo foi me mostrando que os seus alvos não eram só nós, "crianças inocentes", e que eles eram capazes de realizar coisas escabrosas para que lhes fosse reconhecido algum poder...

Aos poucos, fui percebendo também que tampouco as crianças eram inocentes. O mesmo egoísmo, a mesma mesquinhez, a mesma vaidade, as mesmas intrigas... Era incrível ver como a "contaminação" do comportamento do Mundo Adulto acontecia em uma velocidade tão avassaladora! E assim, com menos de uma década de vida, já percebi que eu era uma exceção. Para as crianças da minha geração, a inocência era mais defeito que virtude. Mais do que as Leis do Cristo, tão hipocritamente preconizadas, a Lei de Gérson era a mais perfeitamente compreendida e socialmente aceita entre todos os pirralhos e pirralhas que àquela época cantavam espevitadamente o Ilari-Ilariê...

Sendo assim, a minha situação não era lá muito confortável. A minha "estúpida" moral e a minha risível timidez alimentavam o meu isolamento. Mas apesar de mantê-las firmemente, estas duas não me causavam nenhum tipo de contentamento. Pelo contrário. Eu tinha vergonha de mim mesmo. Do meu comportamento anacrônico. Como eu poderia me manter num Mundo onde todos estavam aparentemente contra tudo o que eu achava certo? Isto é, era difícil entender se os "errados" eram eles ou era eu. Por que era obrigado a me adaptar à conviver com pessoas em quem eu não confiava? Por que a Etiqueta tinha que sobrepor à afinidade? O fingimento era um meio de sobrevivência. Mas esse comprtamento me era absolutamente impossível realizar. A partir daí, a minha "antipatia social" foi se estabelecendo fortemente...

O convívio com o outro era tão complicado que o refúgio em qualquer forma de distração que não necessitasse de contato direto com pessoas foi prevalecendo: a televisão, os livros, os discos, o video-game, as brincadeiras que se poderia fazer sozinho e, mais tarde, o Rádio na sala, com a luz apagada... Mesmo que não tenha cessado por completo, as interações com os garotos e garotas foram cedendo lugar à solidão. Não tardou para ser enquadrado por todos como "diferente", "estranho", "maluco" e outras pechas semelhantes. Mas aquilo, de certa forma, alimentou o meu Ego. A minha personalidade foi se estabelecendo a partir da cisão com o mundo das pessoas "comuns"...

Já na adolescência fui me dando conta de que os "outsiders" não eram aqueles "demônios" que as pessoas costumavam pintar. Quando, enfim, pude me desfazer de algumas amarras e me dar ao luxo de fazer as minhas escolhas, comecei a entrar em contato com alguns caras fantásticos! Ao invés de "más influências" e "figuras a se evitar", fui descobrindo pessoas extraordinárias! Aquelas que por detrás da "Armadura Anti-Social" se mostravam seres amáveis e educadíssimos. Que também viam, como eu, que não dava para aturar "aquela" Sociedade. E ainda que não tivéssemos mais a consciência política e os ímpetos revolucionários da Juventude de outros tempos, sabíamos perfeitamente o Mundo que não queríamos para nós. Não queríamos ser hipócritas. E cada um tentava (e ainda tenta) viver nesse Mundo louco de uma forma um pouco menos imbecil. Procurando uma Alternativa, um Caminho, mesmo sabendo que haverão muitas e muitas pedras por ele. Cada um buscando, de toda forma, um jeito de respeitar a sua Consciência. Ou, em outras palavras, buscando um jeito de respeitar ao seu semelhante, a si mesmo e toda a Vida que há em sua volta...

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