21.1.09

O Gol Como Mecanismo Coletivo de Sublimação (Parte III)

Sendo o esporte em geral, e o futebol em particular, um quadro especular tanto dos instintos masculinos, quanto do poder da associatividade e cooperação humana, não é de se estranhar que o futebol seja usado, na sua curta, mas marcante, tradição, como analogia (e como metáfora) para análises e digressões nas mais diversas áreas do Conhecimento. E vice-versa. A multidisciplinaridade já está presente no calccio há décadas, e o desenvolvimento do esporte, dentro e fora dos gramados, está instrinsecamente ligado a essa influência recíproca.

Mas apesar da utilização dos mais modernos recursos na preparação física, das evoluções táticas, do apoio psicológico aos atletas, do uso da tecnologia e da Estatítica em busca da minimização de erros e do melhor rendimento individual, da crescente profissionalização da estrutura administrativa dos clubes e das fabulosas quantias envolvidas no chamado “Mercado da Bola”, o futebol ainda é uma instituição pouco estudada e mais sujeita à caracterização folclórica do que a historicidade formal. Tal qual a Trindade Suprema para os cristãos, ele exerce um poder extraordinário sobre os seus “fiéis”, mas ainda não houve quem tenha sido capaz de encontrar razões bastantes para explicar este fenômeno.

Faço, aqui e agora, uma audaz tentativa de iluminar parte desse mistério. Uma ligação inusitada, uma reflexão que me veio de um aforismo impertinente do grande Dadá Maravilha, o Rei Dadá, como gosta de ser chamado, e que atuou por mais de uma dezena e clubes pelo Brasil, sempre com o “instinto matador” que o consagrou com um dos maiores goleadores da história do futebol mundial. E a Sua Majestade assim falou:

“O gol é o orgasmo do futebol.”


A princípio, mais uma graça, mais uma das frases de efeito, que proclamou, com folclórica irreverência, ao longo de sua carreira. Eu já conhecia esta pérola há vários anos. Mas, de repente, ao ouvi-la novamente há meses atrás me caiu a ficha: “Uai, faz todo o sentido!...” A união sexo e futebol nunca me pareceu tão límpida e óbvia!

O que é o Gol se não o penetrar de uma bola por um determinado retângulo entre as traves e a faixa de cal no gramado? Tomando a bola, e a sua trajetória, como extensão do movimento e, do próprio corpo do atleta, em última instância é ele, atleta, homem, quem adentra aquele espaço. Este é o seu ímpeto primordial: “entrar com bola e tudo!”. O desejo do goleador é tão obsessivo e insaciável que o seu deleite completo é o avanço triunfante e avassalador de seu próprio corpo por sobre a meta escancarada.

O gol é, portanto, a penetração metafórica de um corpo sobre outro. O enfrentamento e a vitória sobre o opositor que sucumbe à sedução do drible e à magia atordoante da troca de passes. O time adversário é o Superego encarnado: símbolo de todas as justificativas, de todos os subterfúgios, de todos os mecanismos de defesa que se erguem para a obstrução do gozo e da completa realização do indivíduo. Aquele que empurra a bola para o fundo das redes é o Ser que deu forma à satisfação fundamental: ele é o Homem Realizado.


Natural, então, é que todo aquele que, por uma razão ou por outra, não é capaz de satisfazer completamente aos chamados de sua libido, encontre naquele ser, O Goleador, a projeção de realização dos seus desejos não conclusos. E como não são poucos os frustrados, logo forma-se a multidão desejosa. Milhões se desesperam pela conclusão do ato. Tamanha é a sua necessidade que, se possível, entrariam em campo eles próprios e o fariam. Mas como esta possibilidade é remotíssima, depositam a sua esperança num pé salvador, num atleta-representante de todo aquele que se encontra em ânsia de gozo absoluto. Quem faz o gol não é o atleta, não é o time, não é o clube, é a torcida, é cada um presente nas arquibancadas e cadeiras. Cada um se sente como se aquele gol fosse seu. Cada um torna-se um ser que vence o Mundo. Que naquele instante, atinge a felicidade completa. O gol, torna-se, enfim, mecanismo coletivo de sublimação.

E quanto mais complexa e bela é a sua arquitetura, quanto mais apuro e dificuldade técnica de execução esta obra exigir, tanto maior será a satisfação de sua complitude, tanto para quem a faz, quanto para quem a assiste. Não sendo raros os casos em que, mesmo os adversários, atores coadjuvantes daquele contra-ato espetacular, lhe reverenciam por ter realizado tão magnífico feito.

E tanto maior será este goleador, esta “extensão de mim” glorificada, quanto mais gols, por fim, converter. E, na contramão, execrado à mínima falha na consecução de seu ofício. O artilheiro é a Projeção do sucesso de cada um. Não admite falhas. Ele é o baluarte da saciedade reprodutora sublimada. Um semi-deus investido em sua tribo (em seu time), para glorificar o seu nome e manter os seus co-irmãos na forma de gols (gozos) e consequentes triunfos e conquistas, que inscreverão a sua linhagem com augusta magnificência pelos séculos dos séculos.

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom, Mendel, muito mesmo. Já o considero um grande jovem escritor de nossa geração. Belíssimo texto!